11 – Kanazawa

Por que ir a Kanazawa, lá no oeste do país, às margens do Mar do Japão? Acreditei que ter sido inaugurada uma estação do Shinkansen, em março de 2015, era uma dica de que muita gente estava indo para lá. Os tais bons blogs me disseram que valia a pena por causa:

  • Gastronomia em alta
  • Distrito dos Samurais
  • Castelo de Kanazawa
  • Jardim Kenrokuem
  • Distrito das Gueixas
  • Mercado Omicho

Fomos e valeu a pena. Kanazawa, como Kyoto, foi poupada dos bombardeios da Segunda Guerra. Abrigou o segundo mais poderoso clã feudal, no período Edo, rivalizando com Kyōto e Edo ( antiga Tokyo) e era grande produtora de arroz. É uma cidade calma, muito organizada que permite ir aos pontos turísticos caminhando e com gente hospitaleira. Faltou ir à praia de Chirihama. As praias ficam sempre no fim da minha lista. Não por não gostar delas mas tendo vivido sempre com o mar ao alcance dos pés e da vista, penso que devo ir ver paisagens distintas. Quando fui à Tailandia, escolhi ir para o norte. Em Kanazawa, me arrependi um pouco mas não dava tempo, de todo jeito.

Chegamos lá, vindo de Magome e esperando uma modesta estação de trem. Foi uma surpresa só. O Japão prima nos detalhes. A todo momento nos surpreendemos com coisas inusitadas e a estação de Kanazawa não deixa por menos. Uma arquitetura com contrastes entre o novo de vidro e o antigo de ferro, um centro comercial muito grande, uma área externa ajardinada e com esculturas. Um conforto para os viajantes é que esta estação fica vizinha a dos ônibus, como nas outras cidades que visitamos. Para nós, foi especialmente conveniente porque de Kanazawa iríamos para Shirikawa-go e lá só se chega de ônibus. Demos uma rápida conferida e fomos para o hotel. Na volta, íamos ter mais tempo para dar um passeio por ela.

O pórtico de Tsuzumi impressiona. Dependendo de onde a gente se posicione, a vista é completamente modernosa ou com jeito de antiga. Ver a estrutura de vidro através dele é sensacional. E a cidade faz uma homenagem à chaleira, utensílio que ocupava lugar de destaque nas salas principais de uma casa japonesa. Vimos chaleiras em muitos lugares.

Ficamos num hotel escolhido ao acaso mas que acabou sendo bom, barato, novo e bem localizado ( Kaname Inn Tatemachi). Largamos as malas e saímos passeando para ir a Nagamachi, como é conhecido o Distrito Samurai. Inicialmente, os samurais eram servidores civis com função de cobrar impostos para o império. Depois ganharam funções militares, passando a ser da aristocracia. Com o fim do shogunato, viraram artesãos e comerciantes, classe que só passou a ser valorizada no período Meiji.

As ruas eram delimitadas por fossos para proteção e as casas sempre voltadas para o interior.

Saímos, procurando um lugar para jantar. Eu não paro de me encantar com bobagens: os enfeites nas direções dos carros, pessoas estilosas e cenas do cotidiano de avós.

Depois de poucos dias no Japão, saquei a importância do arroz, na culinária. Quanto melhor e mais bem feito for o arroz, melhor será a refeição. Eu que pensava que ia me esbaldar em peixes e frutos do mar, descobri que eles são acessórios, uma coisa à toa que enfeita a tigela de arroz. Mas eu apreciei tudo: o arroz, os frutos do mar, frango, os 3 tipos de “macarrão”: ramens, udon ( um noodle grosso) e soba (feito de trigo integral) e os caldos. Jantamos num lugar comum, onde a comida é servida no balcão e o prato tinha um detalhe curioso. O item mais especial do prato era um caldo. Depois vinha o arroz, feito numa panela de ferro das antigas, com tampa de madeira para dar um odor especial. E, por último, e menos importante 😳 vinha o peixe. O caldo era contadinho e a instrução era de que ele devia bastar para umedecer todo o arroz. Tanto riquifife parece que deu mais sabor à comida. Estava ótima.

O Castelo de Kanazawa, conhecido como o “museu dos muros de pedra”, foi construído em 1583, usado como residência de uma rica família, até 1869. Fica num parque, amplo como costuma ser os parques japoneses, tem 3 portões de acesso, sendo o mais usado o Ishikawa-mon, talvez por ser o que dá saída mais próxima para o Jardim Kenrokuen.

Impossível não notar os cestos usados pelo pessoal da limpeza do parque, para recolher folhas das árvores. Só folhas, não por ser proibido outra coisa mas por, simplesmente, não ter outro tipo de lixo. Regra geral, não há quem largue lixo, nos espaços públicos, no Japão. Não se vê lixeiras. As pessoas parecem levar seus lixos para casa. Na Zona Sul do Rio, até que os bairros são bem servidos de lixeira mas elas são ignoradas e algumas pessoas não tem cerimônia de jogar lixo nas ruas. Mais uma inveja: de pessoas que sabem se comportar com respeito por espaços coletivos.

Jardim Kenrokuem

O jardim ganha o título de “um dos 3 mais bonitos jardins do país”. Fiquei deslumbrada com a paisagem igual a que vemos em cartões postais de jardins japoneses. Laguinhos com aquelas pontes de cimento com um vão arqueado, árvores imensas e a maneira delicada como cuidam delas. Um passeio lindo.

Na saída, uma foto com as manias da viagem: cerejeiras e matcha, chá verde que eu nem dava tanta bola antes de ir ao Japão. Gostei, principalmente, do sorvete. E uma última olhadinha para o castelo.

Entramos, sem planejar, no que chamei a “rota dos doces de matcha”. Doces à base de matcha, um parecido com bolo de rolo; chá e o adorado matcha Latte. Experimentei o sorvete coberto com folha de ouro. Em Kanazawa, a folha de ouro é uma das grandes atrações. Tudo que se possa imaginar de uso para as películas douradas, tem por lá.

Acabamos parando para ver um protesto. Tenho uma filha do mundo da sociologia, antropóloga que ensinou minha alma matemática, apaixonada por tecnologia, a se interessar pelo mundo das ciências sociais. Um protesto calmo e solitário mas empenhado e observado por um transeunte e um policial que tenta desmentir uma má fama dos japoneses. 😉

Seguimos o passeio e vimos uma mostra de Yanagi Sori, um designer japonês (1915 – 2011), famoso por redesenhar produtos do cotidiano ( móveis, untensílios), mantendo os elementos tradicionais japoneses e tornando-os acessíveis a muitas classes sociais. Também tenho uma filha designer que me tirou da ignorância sobre o mundo das artes e fez minha alma de “tech people” ter gosto pelas soluções lindas e inteligentes que os designers nos dão. As filhas ampliam o mundo enquanto nos fazem pessoas melhores.

Museu Fonográfico de Kanazawa

Um jeito bom de saber sobre a história dos fonógrafos. Mesmo sem ser audiófilo, vale a visita. Lá, soube uma coisinha interessante sobre a RCA Victor, memória afetiva dos discos da minha infância, que estampavam no centro um um cachorrinho ouvindo um fonógrafo.

RCA Records (fundada como Victor Talking Machine Company, companhia independente até 1929 e conhecida como RCA Victor entre 1929 até 1968) era a mais famosa produtora de discos, até o final da década de 60, do século passado.

Comprou a Gramophone Co. e junto com ela o direito de uma imagem feita em situação peculiar. O cachorrinho Nipper era do cenógrafo Mark Barraud que morreu e o deixou de herança para o seu irmão Francis. Francis viu que Nipper ouvia atentamente e com carinha triste a voz do dono em gravações deixadas por ele. Francis fez uma pintura da cena e a vendeu , em 1901, para Gramophone, junto com o slogan “A voz do mestre”. RCA Victor ganhou a imagem quando comprou a Gramophone e foi assim que Nipper foi parar nos discos da RCA Victor e ficou famoso no mundo inteiro.

Aumentando a inveja do Japão 😌. Kanazawa tem 470 mil habitantes e os museus aparecem nos caminhos com a frequência com que as Americanas Express, surgem no Rio.

Uma guia turística inusitada.

Estávamos olhando um dos muitos templos ( Shimosnincho ) e uma senhora que nos observava se aproxima e faz a clássica pergunta que ouvimos de muitos japoneses empenhados em tratar bem o visitante: “May I help you?”. Depois da resposta, ela engata num papo em japonês , como faz a maioria, aponta numa direção e comanda que a sigamos. Obedecemos, com a recém adquirida perda do medo de estranhos, e não nos demos mal. Ela nos levou por uma ruazinha e, aos poucos, fomos deduzindo que ela queria nos mostrar os pequenos ateliês da redondeza. Fico pensando num japonês, turista no Rio, sendo abordado por um passante que o chame para segui-lo e ele indo confiante. Uma experiência dessa que final poderia ter?

Mas aqui tudo correu maravilhosamente.

Nossa guia nos levou por uma rua bem bonitinha. No caminho, os arranjos de pedra que vemos para todo lado.

Entramos, sem cerimônia, numa casa bem simples de uma senhora que pintava tecidos de seda. Já começamos pela cozinha, vendo a intimidade da proprietária.

Ficamos esperando a hora em que seríamos instados a comprar alguma coisa mas não aconteceu. Turistas são “mal pensados” mas têm seus motivos. 😊Agradecemos o convite para o chá e seguimos nosso caminho, muito gratos por ter encontrado esta senhora que parece saber preencher seu tempo. A gente lê coisas pavorosas sobre o isolamento dos idosos. É famosa e amedrontadora a solidão deles em países com muito velhos, como o Japão. Fiquei pensando que ia gostar de fazer o mesmo com turistas estrangeiros, aqui no Brasil. Esta pode ser uma atividade interessante para os dias de fartura de tempo que a aposentadoria poderá trazer.

O Distrito das Gueixas

As gueixas ( geiko, em japonês) conquistaram meu interesse depois da leitura de “Memórias de uma Gueixa”.

O livro conta como elas ganharam destaque, a partir do século 17, quando a cultura japonesa começou a incorporar os traços que dariam origem à fixação da elite do país pela beleza e pelos mistérios das geiko.

A palavra “gueixa” significa “pessoa que vive das artes”. Havia “escolas”, chamadas okyia, para formá-las na arte do entretenimento. Sua formação era tida como uma arte e utilizava elementos artísticos ( dança, música, literatura ) para entreter seus convidados, os nobres. A forma como preparavam o chá era uma cerimônia altamente requintada. O treinamento devia começar por volta dos 13 a 15 anos de idade. Em tempo de recessão econômica, alguns pais vendiam suas filhas para as okyia. O livro, através da personagem principal, supostamente uma gueixa real, conta o cotidiano das meninas, nessas casas. Um engano comum é se pensar que elas eram uma espécie de prostitutas de luxo. O trabalho delas não incluía sexo, elas eram artistas.

Pelos idos de 1920, estimava-se haver 80 mil gueixas, no Japão. Atualmente, não passam de 3 mil. Elas se concentram em Kyoto e Kanazawa. Não é comum dar de cara com elas, nas ruas. Elas tem hábitos discretos e vivem meio reclusas. Uns blogs me ensinaram a distinguir uma gueixa real das inumeráveis mulheres vestidas de gueixa que transitam pelas ruas de Tokyo. Na primavera, as mulheres saem às ruas vestidas como gueixas. Fiquei pensando como seria, no mês de junho, as nordestinas se vestirem de “matutas”para preservar tradições. 😊

Li que é preciso olhar a maquiagem, em especial, uma espécie de V, na parte de trás do pescoço. Para ter um contato mais próximo com essas personagens, as casas de chá tradicionais são os melhores locais. O mistério que as envolve, as roupas, a pele embranquecida pela maquiagem, o baton vermelho sangue, o penteado, o jeito de andar em passos miúdos limitados pela roupa, o jeito de ficar em pé com os joelhos curvados, fazem delas um espétaculo maravilhoso de ver.

Tive sorte de encontrar com uma delas, no Distrito de Higashi Chaya (Chaya é um local tradicional de festas e entretenimento. São várias casas de madeira de dois andares ao longo da rua), o único que visitei por ter sabido que era o mais antigo e preservado deles. Um dica é ir no fim da tarde, quando elas começam a circular nas ruas para irem aos locais onde se apresentam.

As casas estavam espalhadas pela cidade mas em 1820 foram removidas para áreas mais afastadas do centro. Tem dois andares, uma exceção, dado que no período Edo, a construção de casas de dois andares era proibida. Os bairros de Gion, em Kyoto e Kazue Machi, em Kanazawa são considerados patrimônio histórico japonês.

 

As tradicionais casas das gueixas estão dividas em três bairros diferentes. Fomos à casa Shima, preservada desde 1820 e aberta à visitação. Tem-se uma ideia perfeita de como é viver: os instrumentos musicais ( uns que eu nunca tinha visto), as dezenas de pentes, roupas, tamancos. Lá, se pode apreciar o jardim interno e participar da cerimônia do chá.

Eu, tietando uma gueixa. 🙂 Ela ia saindo da casa e não resisti: falei “Brasil, Brasil”. Pronto, ela sorriu e a “mestra” dela acabou fazendo a foto.

Voltando ao mundo normal, fomos nos deparando com as imitações de gueixas e samurais, tão encantadoras quanto os originais. Fiquei apaixonada pela gola das gueixas e pelo uso delas nas roupas atuais.

Eu que pensava ter visto o mais especial em Magome, Tsumago, fiquei de cabeça repleta com o mistério e beleza das gueixas.

O mercado Omicho

Carinhosamente apelidado de “Cozinha de Kanazawa”, em funcionamento contínuo há mais de 300 anos, tem papel central na cultura gastronômica da cidade.

Disputa com o Tsukiji, de Tokyo, o título de lugar mais interessante para se ver barracas com oferta de incontáveis de variados tipos de peixes e frutos do mar. Vou dispensar as fotos porque a surpresa que o Tsukiji me causou estragou a daqui.

Há muitos restaurantes com comidas típicas.
Experimentei um prato simples mas com um ritual que o restaurante faz ser cumprido, na ordem e maneira como você vai comendo. Há um passo a passo a seguir. É, basicamente, peixe sobre arroz. Começa-se adicionando os temperos ( gergelim, salsa, molho shoyo, wasabi), depois de se comer o peixe, acrescenta-se um caldo sobre o arroz restante e come-se de colher o resultado que fica parecido com uma canja.

Estava uma delícia mas 3 horas depois, eu estava passando tão mal que tive que voltar ao hotel. Fiquei de molho até o fim da manhã seguinte.

O mercado, o restaurante e o prato matador 😄 que vem acompanhado de instruções.

Antes de chegar ao hotel, o parque e o vaso de tulipas que pagou caro pelo meu mal estar com o exótico almoço 😊 que precisou ser “deixado” nele.

Na noite seguinte, ja estava pronta outra vez para encarar comidas perigosas.

Na volta, muitas pedras no caminho. Dei de cara com uma fabulosa loja de instrumentos musicais, parei para fazer foto para minha filha vidrada por eles. Comprei uma “iguaria” de nome estranho, praticando degustação às cegas. Dei sorte. Era uma bala de creme brulée, de uma marca queridíssima dos viciados em doce como eu.

Antes de ir para a próxima cidade, Shirikawa-go, prometi voltar.

Published by Marta Pessoa

Estudiosa da longevidade, fundadora da Longevos. As viagens são meu laboratório.

Leave a comment

Design a site like this with WordPress.com
Get started